Literatura de Conceição Evaristo resgata a ancestralidade negro-brasileira

Reprodução/USP Imagens/Arte de Lívia Magalhães com imagem de Wikimedia Commons

Da redação, 17/08/2021

Literatura de Conceição Evaristo resgata a ancestralidade negro-brasileira
As “escrevivências” da escritora Conceição Evaristo mostram a importância de voltar ao passado para caminhar no presente, mostra artigo da “Revista Criação & Crítica”

 

Conceição Evaristo é uma das maiores personalidades da literatura contemporânea feminina brasileira, homenageada como Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti, em 2019, cujas obras resgatam a ancestralidade e recuperam a genealogia “negro-brasileira”, retratando o cotidiano das mulheres negras, os preconceitos que enfrentam nos âmbitos social, cultural e político. A literatura negro-brasileira é um instrumento de concretização para o não colonialismo, a “decolonialidade”, na medida em que as mulheres se “autorrepresentam e autoficcionalizam-se”, pois, falar de si, é falar do coletivo. Para discutir essas questões, os pesquisadores Rayron Lennon Costa Sousa e Risoleta Viana de Freitas, em artigo da Revista Criação & Crítica, tomam como base o conto da escritora intitulado Olhos d’água.

No artigo A genealogia negro-brasileira contemporânea de autoria feminina na literatura de Conceição Evaristo: Tempo, Temporalidade e Ancestralidade em Olhos d’água (2018), os autores associam o texto literário com a história, em relação “ao lugar do tempo, da temporalidade e da presença das ancestralidades”, com o objetivo de observar a criação textual que estabelece um vínculo entre as mulheres “pela sororidade e pela dororidade, partindo do que Conceição Evaristo, enquanto teórica, conceitua como Escrevivência”. A obra dela e de outras autoras, como Ana Maria Gonçalves, Lívia Natália, Jarid Arrais, Cristiane Sobral, dentre outras, contam com uma característica comum – a genealogia feminina, acrescida de uma peculiaridade: “uma árvore que tem como raiz uma mulher que segura na mão da outra e assim, em um movimento espiral e de escrevivências”, declaram os pesquisadores.

Conceição Evaristo desempenha, na atualidade, um papel fundamental na literatura negro-brasileira, reverenciando suas ancestrais como parceiras tanto pela condição feminina quanto por serem negras, seguindo caminhos de lutas e de dores, compartilhados nas personagens femininas atadas pela representação simbólica da cor dos olhos, no conto Olhos d’água. Nesse conto a história, o tempo e a ancestralidade são instrumentos de concretização da liberdade de autobiografar-se e de representar a si própria, sem barreira de terceiros: “É vivendo, se vendo e vendo o outro como partícipe que mantém seu olhar pairando no passado e no presente, questionando-se sobre o futuro”.

A respeito do protagonismo afrodescendente na literatura brasileira contemporânea, este é marcado pelo passado da figura do negro como escravo, sem direitos de cidadania, classe inferiorizada, como bem expressa o romancista Aluízio Azevedo, em O Cortiço, “onde o encontro de classes e de culturas acontece, demarcando a relação de superioridade e inferioridade entre seus moradores”. Porém, hoje, as vozes negras protagonizam e criam personagens e histórias, como, entre tantos outros, Luís Gama, Solano Trindade e Carolina Maria de Jesus. A literatura como denúncia é uma das características de Conceição Evaristo, relatando ao leitor as dificuldades, os infortúnios, o descaso social, os obstáculos e os impasses dos moradores das “favelas e becos”.

Em Olhos d’água, coletânea que também dá nome ao conto estudado, Conceição remete às origens da cultura negra, “que tem como raiz o continente africano”, referência em seus escritos, ou em suas “escrevivências”, para relatar, registrar e documentar, dar voz a essa escritora negra, militante, poeta e crítica literária que, por meio de sua escrita, relata o “percurso histórico-social dos afrodescendentes no Brasil” e assim se correlaciona aos contextos sociais contemporâneos. Em Olhos d’água, o conto, Conceição apresenta “o tempo presente como porta para pensar o tempo passado”, ressaltando a questão da morte, “o genocídio de negros e negras nas favelas, nos quintais”. Acentua-se também a condição social das famílias; “filhas e mãe agarrando-se para suportar o medo da possível queda do barraco”, além da perseguição religiosa desde a colonização até hoje, tentando reprimir, pela violência, a religiosidade inerente à identidade nacional afro-brasileira.

O conto mostra as relações entre tempo e religião, observadas quando a narradora-personagem, na ânsia de lembrar a cor dos olhos da mãe, faz uma oferenda aos Orixás: “A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum […] ao contemplar os olhos da mãe, a cor refletia águas correntes – era cor de olhos d’água – águas dedicadas à Mãe Oxum, que é a mãe do amor”.

Essa procura da narradora traduz o resgate de suas lembranças que também se constituem na preservação das raízes ancestrais, com o intuito de estimular o autoconhecimento, de sacramentar a identidade dos afrodescendentes e afro-brasileiros. Quando a personagem compara os olhos da mãe a rios calmos, “águas de Mamãe Oxum”, legitima o lugar e a dimensão da ancestralidade feminina ao longo da narrativa. A ancestralidade feminina negra nessas “escrevivências” estudadas pelos autores do artigo está inter-relacionada à cronologia do tempo linear, “já que as temporalidades vêm com o ato de rememorar, cortes de tempo cronológico que soam como eternidade”.

Artigo

SOUSA, R. L. C.; FREITAS, R. V. de. A genealogia negro-brasileira contemporânea de autoria feminina na literatura de Conceição Evaristo: Tempo, Temporalidade e Ancestralidade em Olhos d’água (2018). Revista Criação & Crítica, São Paulo, n. 29, p. 198-217, 20121. ISSN: 1984-1124. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.i29p198-217. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/171360. Acesso em: 19 maio 2021.

Contatos

Rayron Lennon Costa Sousa – Docente do Curso de Linguagens e Códigos -UFMA, membro do Grupo de Pesquisa em Literatura, Alteridade e Decolonialidade – GPLADE – UFMA/CNPq e do Grupo de Pesquisa em Literatura, Leitura e Ensino – UESPI.

Risoleta Viana de Freitas – Docente do Curso de Letras da UEMA e membro do Grupo de Pesquisa Americanidades: Lugar, Diferença e Violência – UFPI e do Grupo Tese, o Labirinto e seu Nome – UFPI.

Fonte: Revistas da USP/Margareth Arthur

 Veja Também

Prêmio Kindle de Literatura 2021
100 anos da semana de arte moderna está chegando
Flip confirma as datas da 19ª edição
Uma experiência para além do livro
Prêmio São Paulo 2021