Recordo apenas de dois livros anteriores terem afetado o meu sonho na mesma noite em que comecei a lê-los.
O primeiro havia sido “1984”, de George Orwell, com toda aquela perseguição monitorada por uma teletela e a proibição absoluta de não poder escrever e anotar em qualquer pedaço de papel ou rascunho que fosse.
O sonho que tive com base na trama apocalíptica do inglês que colocou os conflitos da política mundial dentro de uma fazenda em ‘A revolução dos bichos’, foi em preto & branco. Escuro e tenebroso.
Para piorar, a teletela me vigiava da cabeceira da minha cama. O que mais me intrigou, depois, foi que tive este pesadelo antes de avançar na leitura e chegar no trecho da tortura com as ratazanas. E quem me conhece sabe o pavor que estes roedores me causam. Certa vez, cheguei a fazer uma zagaia e a deixa-la ao lado da minha cama para me proteger de uma ratazana que parecia um gato e que passou a viver na cozinha, dentro do forno.
Anos mais tarde, viajando pelas páginas da adaptação de Carlos Heitor Cony do clássico de Hermann Melville, “Moby Dick”, me vi a bordo de um pequeno e veloz baleeiro.
A embarcação deslizava por um oceano azul. Éramos marujos, barbas por fazer, gorro, camisetas listradas e arpões, anzóis e uma baita raiva para capturar a ‘Fera do Mar’ e, assim, abocanhar o dobrão de ouro.
Lá, no convés do Pequod, a sombria e solitária figura magra do capitão Ahab nos observava de modo sinistro. Dava mais medo dele do que do cachalote branco.
Mais alguns anos se passaram e, depois de não ter encontrado o livro em uma grande livraria na avenida Paulista, consigo um exemplar do próprio acervo da escritora, Paula Fábrio. Horas depois de não achar o livro, me encontro pessoalmente com a Paula durante o lançamento da coletânea “Tudo o que não foi”, organizada pela romancista Deborah Kietzman Goldemberg.
Ao olhar para a escritora, que conquistou o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013, me veio à mente alguns retratos da minha mãe, principalmente quando a Claudinha (assim minha mãe era chamada na juventude e é assim até hoje por alguns de nossos familiares) ganhou o concurso de rainha da festa da igreja Aparecida, em Paraguaçu Paulista.
Até cheguei a mencionar esta lembrança com a Paula. Dois meses depois deste encontro, retorno a São Paulo e no meio de uma conferência recebo uma mensagem da Paula avisando que os derradeiros últimos exemplares de seu acervo seriam postos à venda por ela naquela semana e, o melhor, sem qualquer taxa de postagem. Dou um jeito e no meio do congresso sindical lhe respondo para reservar um exemplar para mim.
Antes que a semana termine o livro autografado me chega em casa e noto outra semelhança entre Paula e minha mãe: a letra bem feita.
Passo, então, a ler ‘Desnorteio’. Publicado durante a primavera de 2012 pela editora Patuá, mas escrito por Paula Fábrio ao longo de uma vida. Assim como “1984” e “Moby Dick”, o livro me desconserta o inconsciente logo nas primeiras horas.
Não posso deixar o livro e quero avançar na leitura a cada momento. Resultado: na primeira noite vou para um lugar distante, que preciso chegar após pegar um coletivo lotado. Viajo de pé, agarrado ao que meu pai chamava de PQP do Corcel I.
O ônibus percorre um bom trecho de pasto, tem cerca de arame farpado, bois, boiadas, vacas, árvores e terra. Entro numa espécie de vila, mas que tem característica de favela.
Procuro um ex-colega de redação que faz uns três anos que não sai mais do que ele chama de casa. Barbudo, dentes amarelados, sorriso triste, olheiras que assustam. Este sonho bebeu da fonte atmosférica dos irmãos Oliveira, de ‘Desnoreito’: o isolamento em um imóvel moribundo e as angústias acorrentadas dentro de um quarto esquecido.
Eles pulsam em ‘Desnorteio’, obra vigorosa de Paula Fábrio, talhada com profundo detalhe de consciência, com força de linguagem e muito sentimento. Isso é o que me atrevo a dizer deste livro. O leitor precisa sentir esta experiência, este desnorteio literário que se assemelha aos sonhos que nos deixam cabreiros, pasmados, forçando a matutar.
Por Ramon Franco