Já falei aqui sobre o eterno debate “adaptação literária versus obra original”, de onde podem surgir muitos fracassos, mas também muitos projetos bem-sucedidos. E é justamente sobre este último caso que vou comentar agora, graças à chegada do filme A Cabana aos cinemas. Considero este o melhor exemplo de como adaptar um livro para o audiovisual, ajustando pequenos detalhes, mas se mantendo fiel ao material de origem. Entretanto, para justificar tal afirmação, terei que fazer uma análise com muitos SPOILERS, então leia por sua conta e risco.
Tal adaptação já é aguardada desde 2007, quando produtores de Hollywood manifestaram interesse em transpor o recém lançado livro de William P. Young para as telonas. Bastava que um número considerável de exemplares estivesse em circulação para isso acontecer e o empurrãozinho que faltava veio graças ao Projeto Missy, cujo objetivo era divulgar a obra.
Em termos de trama, os dois formatos têm a mesma premissa: Mackenzie Phillips (Sam Worthington) tem sua filha caçula raptada e todas as evidências indicam que ela foi assassinada em uma velha cabana. Alguns anos depois, Mack recebe um bilhete, aparentemente assinado por Deus, convidando-o a retornar ao local da tragédia. Lá, ele encontra Elousia (Octavia Spencer), Jesus (Avraham Aviv Alush) e Sarayu (Sumire Matsubara), com quem terá conversas que mudarão a sua vida.
Desde a primeira cena, vemos as semelhanças entre as duas mídias, começando pela forma como ela é contada na película. O melhor amigo de Mack, Willie, é quem narra o que se passa com o protagonista, iniciando com sua infância conturbada com o pai alcóolatra e sua relação reservada com o Senhor. Nesse caso, os elementos visuais são eficazes em resumir muitas páginas descritivas a poucos segundos e isso é usado na medida certa, seguindo a mesma ordem cronológica do romance.
A fidelidade com o original se mantém inclusive nos diálogos. Constatar isso causa alívio para os fãs, apesar de ser algo esperado se pensarmos bem. Afinal de contas, o que tornou a obra de Young um best-seller foram os diálogos profundos travados entre Mackenzie e os três aspectos de Deus. Então não teria por que alterá-los no filme, visto que tais mudanças provavelmente não seriam capazes de tornar mais claros os conceitos que já são tão bem desenvolvidos com a escrita do autor.
Uma questão que me intrigava antes mesmo da adaptação ser lançada era sobre como seria feita a caracterização de Sarayu. Ela representa o Espírito Santo e, como tal, é descrita como um ser etéreo, sem uma constituição sólida. No cinema, isso é bem representado com o efeito simples de dar à personagem um brilho diferente quando esta é tocada pela luz do sol. É sutil, mas suficiente para mostrar que há algo de diferente nela.
Obviamente, o roteiro faz algumas alterações para tornar a trama mais ágil e reduzir 18 capítulos a pouco mais de duas horas de vídeo. Infelizmente não foi possível que todas as conversas com Elousia, Jesus e Sarayu fossem utilizadas, pela questão do tempo e da complexidade delas. Entretanto o mais importante de cada uma é usado, mesmo que em um momento diferente, como na travessia sobre a água que Mack realiza com Jesus, a qual é um pouco diferente por ajustar alguns detalhes. Ou então a cena na colina onde Mack reencontra o pai, que acontece mais rapidamente.
Outra escolha que também é compreensível: no livro, Deus conduz Mack até o local onde está o corpo de sua filha e então é feito o funeral no jardim. Contudo, após ele se recuperar do acidente que sofre, ele retorna ao mesmo lugar com a polícia para resgatar os restos mortais de Missy. No filme, esse retorno é omitido. Tal fato torna a cerimônia no jardim muito mais significativa do que apenas mero simbolismo e conclui a trajetória espiritual de Mackenzie.
Como disse antes, alguns diálogos são omitidos por se desviarem do questionamento central da obra. Mas percebe-se que a escolha de omiti-los também visa evitar polêmicas que poderiam afastar uma parcela de público. A principal omissão é em relação ao posicionamento de Jesus perante à religião, economia e política, as quais são duramente criticadas no livro enquanto que na projeção essa crítica é mais suave.
“Falando de modo simples, religião, política e economia são ferramentas terríveis que muitos usam para sustentar suas ilusões de segurança e controle. As pessoas têm medo da incerteza, do futuro. Essas instituições, essas estruturas e ideologias são um esforço inútil de criar algum sentimento de certeza e segurança onde nada disso existe. É tudo falso! Os sistemas não podem oferecer segurança, só eu posso. ” – p. 166.
Outro ponto deixado de fora foi a justificativa que Deus dá a Mackenzie para ser chamado de Papai mesmo se mostrando como uma mulher. No livro essa declaração tem um tom ligeiramente machista, e suspeito que isso não agradaria uma parte das espectadoras:
“Por enquanto, deixe-me dizer que, assim que a Criação se degradou, nós soubemos que a verdadeira paternidade faria muito mais falta do que a maternidade. Não me entenda mal, as duas coisas são necessárias, mas é essencial uma ênfase na paternidade por causa da enormidade das consequências da ausência da função paterna. ” – p. 84.
Por último, a única coisa que de fato é ruim na adaptação é a atuação de Sam Worthington. Mackenzie é um protagonista com uma carga dramática muito forte pois vinha sofrendo desde a infância, de modo que isso sempre foi um obstáculo na sua relação com O Criador. Após a morte da filha, ele caiu em profunda amargura e tristeza. Se livrar disso convivendo pessoalmente com Papai exige um esforço emocional muito grande que diversas vezes lhe arranca lágrimas, proporcionando os momentos mais comoventes da história. Todavia o ator escolhido para interpretá-lo não consegue passar sequer um terço desses sentimentos. E não é preciso ser nenhum crítico de cinema para perceber isso.
Em um dos momentos mais emocionantes, Mack é obrigado a assumir a função de juiz. Depois de implorar para que isso parasse, ele é recompensado com a visão de sua filha brincando com Jesus. Essa é uma cena marcante, mas ver a atuação de Sam é decepcionante, pois ele não derrama uma lágrima sequer. Como a figura principal, ele deveria ser o encarregado de conduzir o público a uma emoção maior.
Felizmente isso é compensado com a atuação da Trindade feita por Octavia Spencer, Aviv Alush e Sumire Matsubara, que desempenham seus papéis de forma brilhante e são os responsáveis por toda a comoção da película. Por isso, uma única má atuação no elenco não desmerece o mérito da produção.
Sendo assim, finalizo aqui essa longa análise na qual busquei explicar porque A Cabana é uma adaptação tão boa. Como em toda transição entre mídias distintas, foram necessários ajustes, mas esta cumpriu seu papel de captar a essência de um fenômeno mundial. A sensibilidade com a qual a William P. Young narra a obra original facilita o trabalho, mas os produtores têm seu merecido crédito. Por isso espero que este caso sirva de exemplo e no futuro mais adaptações possam seguir o mesmo caminho.
Para outras informações, vocês podem ler o texto “Adaptação literária versus obra original” ou então a resenha do livro A Cabana e a crítica do filme.
Por Mozer Dias
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