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Duas semanas atrás participei de uma aula com um dos maiores jornalistas de nosso tempo: o editor-executivo da Folha de S. Paulo, Sérgio Dávila. Desde os meus tempos de faculdade o nome Sérgio Dávlia sempre fora sinônimo de grandes reportagens, de faro jornalístico apurado e texto preciso. Quando lia suas matérias, antes e depois de formado, sempre me vinha na mente aquele ritmo de investigação jornalística impresso no filme ‘Todos os Homens do Presidente’ (de 1976), onde os atores Robert Redford e Dustin Hoffman encarnam os repórteres do Washington Post – Bob Woodward e Carl Bemstein – responsáveis pela série de reportagens que resultou no impeachment do então presidente americano Richard Nixon. Dávila, entre outras grandes matérias, cobriu o atentado de 11 de setembro, quando os aviões sequestrados por terroristas suicidas atingiram as duas torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, assustando o Brasil naquela manhã de 2001 com o atentado sendo transmitido ao vivo para todo o mundo. O volume de informação e de situação a reportar era tanto que, Dávila precisou tomar uma decisão: como traduzir para os leitores do Brasil este caos? A prioridade encontrada e a edição definida foram dignas da função de um jornalista: o testemunho de alguém que presenciou tudo aquilo, inclusive sentindo o que pode ser chamado de o gosto da guerra. A tensão, o perigo e o cheiro de tudo que se passava ao seu redor no pior ataque da história americana, desde as batalhas da Guerra da Secessão 140 anos antes.
É sob este mesmo ponto de vista: não de um repórter na guerra, mas de um repórter na condição de leitor, que quero descrever a minha experiência com ‘Cem Anos de Solidão’, de Gabriel Garcia Márquez, que neste maio completa 50 anos de publicação. Ainda na adolescência, numa tarde quando não trabalhava e pouco me interessava por outra coisa a não ser futebol no campinho, bicicleta e pelos filmes da locadora de VHS da minha cidade, acompanhava a minha mãe na casa da nossa tia, que era casada com um escultor. Na verdade, o maior artista plástico com quem já convivi e o maior leitor da nossa família. O tio Trajano devorava livros com a mesma intensidade com que esculpia criando e recriando em troncos e em madeiras.
Embaixo da TV havia um conjunto de livros enfileirados e passei a observar os títulos que ali estavam. O mais grosso me chamou a atenção. Era meio amarelado e na capa trazia duas cartas de tarô e uma mão com os riscos da quiromancia: ‘Cem Anos de Solidão’, de Gabriel Garcia Márquez. Nem me atrevi a ler, já que uma das cartas do tarô trazia uma figura muito estranha.
O tempo passou. Depois que li ‘O alquimista’, de Paulo Coelho, identifiquei que poderia desenvolver o meu potencial para a literatura, alimentava o sonho de me tornar escritor. Paulo Coelho despontava com outras obras, lançava um livro atrás de outro, concedia entrevista e, para um fã de Raul Seixas desde a infância, Paulo era o amigo do roqueiro, o letrista de ‘Gita’.
Me formei em Jornalismo, deixei minha cidade, me tornei repórter. “Mãe, a senhora poderia pedir para o tio Trajano emprestado o livro ‘Cem Anos de Solidão’, do Garcia Márquez?” – pedi numa das visitas da minha mãe em casa. Duas semanas depois o livro me chegava, acho que dentro de uma sacola de supermercado. Comecei a ler. E não parei enquanto não cheguei à última geração dos Buendía. Confesso que até hoje essa família vive dentro de mim. Tem hora que vejo a bisavó dos meus filhos, a dona Geni, como a autêntica Úrsula Iguaran. Aí, me lembro da minha vó Carolina, mãe do meu pai, e também a identifico como a Úrsula Iguaran brasileira. Até hoje ainda não encontrei nenhuma mulher que se parecesse com a Remédios, mas entre as crianças da família sei de algumas que comiam terra, assim como Rebeca. Bom, não vou mais elencar as identidades do livro com os personagens reais de minha vida. Apenas concluir dizendo que, são 50 anos em 100 anos de puro magnetismo literário, de enredo e personagens recriados da oralidade e da realidade que nos cercam. ‘Cem anos de Solidão’, um livro que diariamente pulsa.
Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘A próxima Colombina’, ‘Contos do Japim’ e ‘Getúlio Vargas, um legado político’