De pancadas e rascunhos

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Avanço na leitura de um achado. Aliás, gosto muito deste adjetivo. Tanto que, quando estava no Jornalismo diário, reservava para o fim de ano uma das pautas mais pitorescas: percorrer os setores de achados e perdidos dos Correios, dos terminais rodoviários e de locais de grande fluxo de pessoas. Dentadura era o objeto mais comum, seguido das carteiras de identidade e dos guarda-chuvas. Em ‘A Caverna’, do único prêmio Nobel de Literatura da Língua Portuguesa, José Saramago (1922-2010), um dos personagens da trama é um cão de nome ‘Achado’. Também tive um ‘Achado’, era marronzinho, baixinho e cheio de energia. Vivia amolando a gata da casa.

O achado desta vez não é do Saramago, nem meu. Mas de Caê Guimarães, colega jornalista de Vitória (Espírito Santo), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2020 com a narrativa ‘Encontro você no 8º round’. A trama fala de boxe, de luta pela sobrevivência, de sonhos, de quedas, de pancadas e rascunhos. Boxe e literatura sempre me fascinaram. Perdi as contas de contas vezes assisti aos filmes do Sylvester Stallone na saga de Rocky Balboa. ‘Rocky II, a revanche’, de 1979, é o meu preferido e inesquecível. Assisti pela primeira vez numa madrugada dos anos de 1980 na casa da minha vó Luiza (que semana passada tomou a primeira dose contra a covid-19). “Firme bunito, fio. O homi lutô muito e venceu”, foi o comentário dela ao desligar a TV a cores na fabricante National. Era mais de duas da manhã e lá no quarto meu avô Miguel (1920-1994) roncava alto.

Anos depois, prestes para nascer o meu primeiro filho, Clint Eastwood roda, em menos de seis semanas segundo o que disseram, ‘Menina de Ouro’ (2004). O longa é inspirado numa série de contos sobre ringues, esforços, suores, treinos e sangramentos de F.X. Toole (1930-2002), mas em especial em ‘Million Dollar Baby’. Desta série, tenho preferência não pelo conto que deu origem ao filme, aliás, vencedor de 4 Oscars, incluindo o de Ator Coadjuvante para Morgan Freeman, que interpreta o narrador da trama em atuação perfeita quanto à de ‘Red’, em ‘Um Sonho de Liberdade’, mas para outra história, que dá voz ao homem-curativo. Homem-curativo é o que estancava o sangue do pugilista para que desse tempo suficiente até que o boxeador pudesse derrubar o oponente sem que o juiz, em razão do sangramento, suspendesse a luta por nocaute técnico.

Dos autores que escreveram ou praticaram o boxe, além do Caê Guimarães, gostaria de citar Ernest Hemingway (Nobel em Literatura assim como Saramago, que viveu entre 1899 e 1961), Norman Mailer (1923-2007) e Jack London (1876-1916). Em síntese, associo muito a resiliência que impera nas orientações de agora ao fato do pugilista, ou escritor, receber porradas, absorver os golpes, mas não cair. Os treinos, assim como os rascunhos, são gotas de vitórias. “Em casos assim, é preciso ter muito pescoço para absorver os golpes de alguém com tal quantidade a mais de massa. Capacidade de assimilação. A forma educada de chamar a resistência para tomar pancada. Também é preciso ser controlado o bastante para não se levar pelo sangue quente” (página 21. ‘Encontro Você no 8º round’, de Caê Guimarães). Vida, boxe e literatura: tudo a ver.

Ramon Barbosa Franco, 41 anos, é escritor e jornalista, autor de ‘A próxima Colombina’, ‘Contos do Japim’, ‘Getúlio Vargas, um legado político’ e das narrativas inéditas ‘Os canônicos’, ‘Canavial, os vivos e os mortos’ e ‘Dias de pães ázimos’ (e-mail: Este endereço para e-mail está protegido contra spambots. Você precisa habilitar o JavaScript para visualizá-lo.)

Ramon Franco Por Ramon Franco

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